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"Quando a avó trocou o coração por um electrodoméstico, continuou amando. Estava tão acostumada, fazia já do amor uma coisa plenamenteracional. Amava por lucidez. Ela dizia: amar é saber. E dizia: amar é melhorar.
Tantas vezes me repreendeu quando rabujei ou abreviei um abraço.
Ordenava apenas: melhora, rapaz. Melhora".
"O meu avô, ao contrário, era um homem de oficina. Para ele, a vida era uma tarefa. Havia que cumprir, plantar, colher, assear, ter modos, manter o silêncio, poupar palavras".
"Alguém disse que, em segredo, exactamente deitada para dormir, a avó chorou uma lágrima apenas, e de imediato ela floriu em seu olhar. Uma flor azul que se levantou do rosto, como a própria lua em redor da cabeça.
Tanta coisa era mágica na sua vida. Até a tristeza.
(...)
No dia seguinte, sem explicação, um bando azul passou como se fosse chuva chilreando. Descendo às copas das árvores, que se regavam ou choravam também".
"Para brincar, a avó disse que iria com ele debaixo das árvores, como ficava tanto, à espera de ideias ou alegrias. Deitaram-se. Ela segurou as mãos por sobre a cabeça do marido e declarou: serei sempre o teu abrigo.
As pessoas abrigam-se umas nas outras. Mesmo ausentes, nossos abrigos existem. Estamos debaixo da memória".
"Um dia, entendi que os velhos são heróis. Passaram por muito, ganharam e perderam tanta coisa. Perderam pessoas. Persistem sobretudo para cuidar de nós, os mais novos, e nos assistirem. Observam-nos. São heróis. Ainda sabem amar depois de tantas dificuldades".
"A avó era puro amor, e o avô, que dizíamos ter um ratinho a correr numa roda ao invés de coração, amava por igual. Tinha os sentimentos pouco adornados, mas tinha-os com a mesma intensidade. Meu querido avô, quando o vigiávamos de perto, via-se muito bem que sem a avó não podia ser feliz".
"O meu avô habitava uma espécie de escuridão. Todas as pessoas, os cães e as coisas andavam como em pouca cor, sob fundos, por vezes, muito negros. O avô não tinha dias por completo. Tinha uma coisa pouca dos dias.
Sentia-lhes mais o fresco ou o quente. Era pela pele".
"Meus queridos avós, de corações esquisitos, os dois, eram, afinal, heróis perfeitos. O coração electrodoméstico e o ratinho a correr numa roda entendiam-se como uma verdade absoluta. Aprender isso foi do mais importante da vida. Eu disse: serão sempre o meu abrigo".
Valter Hugo Mãe
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